Com 14 milhões de usuários cadastrados, o PicPay é uma das principais fintechs de pagamentos do País. Até 2028, a carteira digital que pertence ao Banco Original, controlado pela família Batista (da J&F), quer ganhar ainda mais espaço: a ideia é saltar para 100 milhões de clientes cadastrados. Para chegar lá, a companhia está apostando alto no uso de inteligência artificial (IA), criando algoritmospara conhecer os clientes e parceiros a fundo e oferecer serviços e produtos “ao gosto do freguês”.
O projeto será encabeçado por Isaac Ben-Akiva, doutor pela Universidade de Toronto e ex-diretor de aprendizado de máquina do banco britânico Barclays. Recém-chegado ao País, o executivo será o diretor de inteligência artificial do PicPay, na qual deve montar uma equipe de 50 cientistas de dados até o fim do ano – no Barclays, sua equipe tinha 250 pessoas. A área será um dos principais destinos de contratação do PicPay, que tinha 200 funcionários no início de 2019 e quer chegar ao fim de 2020 com 1,8 mil.
“A aplicação que teremos de IA não será conservadora. O grande objetivo é entender o cliente. Se você consegue uma boa representação, você tem a possibilidade de criar modelos preditivos mais fortes e precisos”, explica Ben-Akiva, em entrevista exclusiva ao Estado. “Isso possibilita entender características psicossociais e trazer para a economia comportamental. Junto com o histórico de transações, o entendimento fica muito maior”, diz.
A construção de perfis de clientes, algo já feito em escala global por gigantes como Facebook e Google há mais de uma década, vive um período de aquecimento no sistema financeiro brasileiro. Por aqui, empresas e startups tentam ir além do entendimento dos clientes por meio de dados tradicionais como pontuações de birôs de crédito e histórico de compras. O PicPay também está de olho no uso de dados “não tradicionais” – como a frequência e o tipo de compras realizados por um usuário, bem como a relação com bons pagadores.
“O PicPay tem um elemento social, que permite o cadastro de amigos e, com ele, movimentações financeiras. Com isso, é possível fazer correlações que permitem oferecer produtos”, explica Gueitiro Genso, que assumiu a presidência executiva da empresa há nove meses. Antes, ele já teve postos de liderança no fundo de previdência Previ e na Vale, além de ter dirigido várias áreas do Banco do Brasil.
Ben-Akiva diz inclusive que é possível buscar dados de comportamento em outras redes sociais, como Instagram, mas que isso não é desejável no momento, dado o grau de críticas e desconfiança que vivem os gigantes da tecnologia. “Isso envolve um contrato social. Tem de ser tudo transparente”.
Modelos
O projeto do PicPay ocorre num tempo em que a diferenciação entre fintechs e empresas tradicionais do setor não ocorrerá pelos tipos de dados, mas pelo o que é feito com eles. Hoje, o sistema é fragmentado: bancos, emissoras de cartões e varejistas têm dados específicos de partes do processo de pagamentos de um cliente.
No segundo semestre, começará a ser implementado no Brasil o sistema de open banking, que permitirá o compartilhamento de informações dos clientes no setor financeiro. Assim, rivais terão acesso a praticamente os mesmos dados. Saber o que fazer com eles por meio de modelos de IA será fundamental no cenário em que a disputa do PicPay não ocorre apenas com serviços nativos digitais, como o Mercado Pago, mas também com bancos tradicionais. “Hoje, 80% do tempo de um cientista de dados é aplicado na preparação de dados. Selecionar as variáveis para a máquina trabalhar é a parte mais difícil. É isso que vai gerar vantagem competitiva”, explica Ben-Akiva.
A diferenciação por saber o que fazer com as informações pode inclusive determinar quem sobreviverá nesse mercado. “Tenho dúvidas se todos os apps que se propõem a ser carteira digital estarão vivos daqui dois anos. Se os modelos do PicPay para usuário final funcionarem, o app poderá prevalecer”, explica Fábio de Miranda, coordenador do curso de Engenharia da Computação do Insper.
À la carte
O primeiro modelo de IA do PicPay começou a ser produzido no final de fevereiro. Ele será voltado para o pagamento de cashbacks – retorno financeiro após o pagamento – aos clientes. “Não adianta, por exemplo, dar um cashback em bilhetes de metrô para quem não usa transporte público”, explica Genso.
A ideia de poder oferecer promoções personalizadas é um dos fatores que a companhia espera aumentar a base de clientes – na mira, estão os 45 milhões de brasileiros desbancarizados. A personalização poderá ser boa também para quem vende. Um supermercado que precisa fazer promoções para eliminar estoque com validade próxima ao vencimento pode saber exatamente quando e para quem anunciar, diz Genso.
A nova área de IA também indica que a disputa que deve se acirrar. “Pode haver uma guerra de preços em torno do cashback. Não se pode exagerar na dose, então o uso de IA para controle é fundamental. ”, explica Luiz Kugler, pesquisador da FGV.
No futuro, a companhia espera servir como uma plataforma de produtos de crédito de outras instituições, bem como ter um analista financeiro automatizado para cada usuário. As melhores indicações, claro, serão feitas pela máquina. É uma situação que parece sem volta, como afirma Ben-Akiva. “Os modelos precisam ser aplicados ao processo de negócios. É uma mudança cultural.”